terça-feira, 11 de maio de 2010

Adeus


"Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus."

(Eugénio de Andrade)

Não, não é um Adeus, nem tão pouco uma pausa. Desta vez é só um poema. Um poema, como tantos outros. Foi um poema que li e que fiquei a pensar.

Pareceu-me de repente uma fotografia do pensamento ou do sentimento do Poeta, um momento apanhado em palavras. Achei graça ao que me passou pela cabeça. Achei graça ao interior do poema. Achei graça ao flash, à fotografia, achei que a imagem me ficou na cabeça.

4 comentários:

Torquato da Luz disse...

Cara Suma, gostaria de enviar-lhe um convite. Pode fornecer-me o seu endereço electrónico para tslz@netcabo.pt? Ficar-lhe-ia muito grato.

Torquato da Luz disse...

Ao reler o comentário anterior, verifiquei ter deixado pousar uma gralha no seu nome.
Desculpe, cara Sum.

Anónimo disse...

E é tão estranhamente verdade o efémero que são alguns sentimentos e as palavras que os definem e que hoje são tão sinificativas, amanhã não valem nada. É estranho, mas é verdade. E a mim isso assusta-me.

sum disse...

Caro Anónimo,
Na vida "tudo muda" a toda a hora.
Sim, o que diz é muita verdade. O que sentimos hoje, podemos não o sentir amanha e isso assusta qualquer um :), mas também pode ser a nossa salvação :)
Viver é isso mesmo, e se assim não fosse, o que seria de nós :)