Parece impossível, ainda ontem estive a
pensar no tanto que mudamos ao longo dos anos sem dar por isso. Passo a passo é
imperceptível. Esta mudança só se torna visível quando voltamos atrás no tempo.
Quando vimos fotografias de outrora, lemos diários, cartas ou outras coisas que
tais que nos projetam para tempos idos. Aí sim conseguimos ver as diferenças
que se operaram e notar o peso e o tamanho da mudança.
A verdade é que a verdade muda todos os
dias pela carga de conhecimento que obtemos diariamente. Este processo é
geralmente um processo silencioso mas muito profundo.
Muda-nos a vida, muda-nos a maneira de pensar, a forma de
agir. Muda-nos os quereres e as vontades, muda-nos a mentalidades e como tal
muda-nos a forma de ver o mesmo objecto, a mesma paisagem, o mesmo canto da
sala.
A carga emocional que pomos em cima de cada coisa, faz com que essa coisa
deixe de ser a mesma. E quem diz coisas diz pessoas.
"A Verdade é um Modo de Estarmos a Bem
Connosco
Cada época,
como cada idade da vida, tem o seu secreto e indizível e injustificável sentido
de equilíbrio. Por ele sabemos o que está certo e errado, sensato e ridículo. E
isto não é só visível no que é produto da emotividade. É visível mesmo na
manifestação mais neutral como uma notícia ou um anúncio de jornal. Donde nasce
esse equilíbrio? Que é que o constitui? O destrói? Porque é que se não
rebentava a rir com os anúncios de há cento e tal
anos? (Rebentámos nós, aqui há uns meses, em casa dos Paixões,
ao ler um jornal de 186...). Mas a razão deve ser a mesma por que se não
rebentou a rir com a moda que há anos usámos, os livros ridículos que nos
entusiasmaram, as anedotas com que rimos e de que devíamos apenas rir. O homem
é, no corpo como no espírito, um equilíbrio de tensões. Só que as do espírito,
mais do que as do corpo, se reorganizam com mais frequência. Equilibrado o
espírito, mete-se-lhe uma ideia nova. Se não é expulsa, há nela a verdade.
Porque a verdade é isso: a inclusão de seja o que for no nosso mecanismo sem
que lhe rebente as estruturas. Ou: a coerência de seja o que for com o nosso
equilíbrio espiritual. A verdade é um modo de estarmos a bem connosco. Mas é um
mistério saber o que nos põe a bem ou a mal. Os anúncios de há cem anos eram
ridículos porque sim. Nos meus escritos de há anos, mesmo nos ensaios, aquilo
de que me separo não são muitas vezes as ideias, a argumentação, mas um certo
modo de se olhar para os argumentos, os problemas, um certo nível humano de
encarar as coisas. Leio um ensaio de há vinte anos e sinto que eu tinha menos
vinte anos. Há um nível etário para a mesma verdade nos existir. A verdade de
que falei há vinte anos é-me exatamente a de hoje; e todavia há um desfasamento
no modo como corri para ela e me entusiasmei com ela e me comovi com ela. Tudo
agora me acontece ainda mas num registo diferente. Não é em si que as verdades
envelhecem: é com as rugas que temos no rosto e na alma."
Vergílio Ferreira, in "Conta-Corrente 2"
Vergílio Ferreira, in "Conta-Corrente 2"
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